27 de setembro de 2010

Ela me chamava de Quimera

Parte 4 - Sobre o bilhete que não enviei

Eu dizia para gritar meu nome. Implorava para que gritasse meu nome. Ela sorria e dizia: “Que bobagem é essa agora, Quimera?”. Ela me chamava de Quimera porque não conseguia pronunciar meu nome. Quimera era para quem ela cozinhava doces se sentindo bonita vestindo o avental que ganhara da tia. Quimera era o homem que a segurava forte e a apresentava aos amigos que também eram cúmplices. Quimera era uma farsa que ela podia morder. Quimera era o homem que abria a porta do banheiro para fazê-la gargalhar no chuveiro. Quimera era mais uma criação dela e por isso não havia decepção. Porque quando era eu, não era Quimera e porque quando era Quimera não era eu. Nós a fizemos feliz até ela cansar e criar outra coisa. Hoje disseram que ela arranjou alguém. Ouviram boatos de que ela o chama de Sonho. E eu se pudesse mandaria um bilhete ao pobre coitado: “Meu caro, peça encarecidamente para que ela o chame de Realidade”.

13 de setembro de 2010

Ela me chamava de Quimera

Parte 3 - Sobre os sapatos vermelhos

Eu lembro daqueles tempos que resolvi estudar antropologia e meu ceticismo me impedia de não viver o básico. Lembro que queria ser escritor para retratar o que era banal, carnal, o que a gente realmente vivia. Lembro que ela me abraçava as costas enquanto me roubava as palavras e dizia que eu era bruto porque não a escolhia prontamente. Eu realmente demorava a cogitar a possibilidade de largar os versos para satisfazê-la. Queria que ela pudesse entender que eu precisava daquilo para ser um homem mais interessante. A realidade tomava a ponta da minha caneta e eu poderia pagar seus sapatos caso a editora apostasse em minha melancolia fingida. O problema é que eu era um homem feliz. Ela dizia que apesar do bom humor eu via problema onde não existia, que respeitava demais a poesia e que eu a amava porque precisava depositar meu amor em outro corpo. Ela dizia que na verdade eu era um egoísta porque no fundo esse amor era todo para mim. Lembro da minha vontade de esganar e abraçar aquela infeliz em um aperto só. Mas aí pensava que estava ferindo a mim mesmo e resolvia comprar a droga do par de sapatos com dinheiro emprestado.

Ela me chamava de Quimera

Parte 2 - Sobre a nossa vida

Ela dizia que meu ciúme era bobo e que minhas manias eram feias. Eu tinha ciúmes dela porque não era difícil lhe roubar atenção. Eu sentia prazer em desdenhar seus olhares, mas sabia que ninguém mais deveria fazê-lo. Talvez eu quisesse que seus olhos de criança tivessem mais alma do que realmente tinham, eram tão sinceros que acabavam pesando as minhas intenções. Eu não queria entrar em seus jogos de utopia, só a imaginava andando de meias pela casa posando para mim à frente da cortina que escolheu a dedo na loja. Lembro da cortina ter flores e ela usava um termo “kitsch” como quem sabia que o fazia. Era sabida ou fingia. E eu pensava que só precisava aprender a tocar o maldito samba de que ela tanto falava. Eu não entendia quando ela dizia que naquelas noites que eu me ausentava minha voz não fazia falta. Ela não queria ouvir minhas piadas desprezíveis. Ela só queria que eu estivesse por perto fazendo barulho de xícaras pela casa, de descarga, de televisão ligada no canal de esportes. Ela só queria saber que eu estava acordado, como se isso fosse fazer grande diferença. Ainda tento lembrar do dia em que eu não dormi antes dela.

12 de setembro de 2010

Ela me chamava de Quimera

Parte 1 - Sobre a minha preguiça

Ela dizia que eu tinha mistérios. Lembro disso e rio. Um homem como eu, tão perdido, teria preguiça até mesmo de fazer rodeios. Um homem como eu, que escuta blues e recita Manuel Bandeira, não poderia ser tão enigmático. Acredito que eu a mantinha por perto porque ela realmente acreditava que por detrás da minha simplicidade existia algo mais. Pobrezinha. Ela acordava e falava tanto que mal conseguia acompanhar seu ritmo. Era rítmica, na maioria do tempo. Trazia uma inquietação que me dava certo tédio do que ainda deveria ser feito, eu realmente achava que nada deveria ser feito. Por vezes hesitei em calar-lhe a boca afirmando que o mundo estava em boas mãos e que a nova política não alteraria os nossos dias. Mas fingia prestar atenção. Fechava os olhos e resgatava a mim mesmo daquele mundo criado por ela. Vai ver eu não queria nada criado. Queria usado, rasgado, maltrapilho. Procurava outras que fossem mais simples de gênero e acabava voltando com sorriso amarelo e estômago vazio. Ela me chamava de Quimera e até hoje penso no significado disso. Ainda tento lembrar se eu a chamava de algo.

eu falo insatisfeitismo

É porque as vezes fico pensando se seria melhor usar “pra” ou “para”. Não que “pra” esteja errado e não que “para” seja pomposo. Deveria existir um meio termo entre “pra” e “para”. Eu queria usar “pra” pra ser mais moderninha, tenho achado mais conveniente. Então, penso que “para” para poesia fica mais bonito. Deveria existir um meio termo entre língua coloquial e culta. A língua que eu inventasse pra/para ser o que sou. Meio popular e meio letrada. Uma completa insatisfeita.

6 de setembro de 2010

si doux comme un petit-four

Uma surpresa. Um último cigarro encontrado na bolsa sem uso. Uma música francesa bem melosa para aprender o refrão. Um céu azul-céu depois de uma semana de chuva. Um elogio. Uma cerveja gelada com amigos de coração quente. Uma tarde de feriado para usar chinelo com meia. Uma revista para decorar o apartamento de longe que nem existe. Um bolo com nome de Saúde. Uma planta com nome de Felicidade. Para a vida ser doce, em embalagens de petit poa, em tons de rosa e marrom clarinho. Taí, uma embalagem para cada tipo de vida. Se não existe, algum designer poderia inventar.