13 de setembro de 2010

Ela me chamava de Quimera

Parte 3 - Sobre os sapatos vermelhos

Eu lembro daqueles tempos que resolvi estudar antropologia e meu ceticismo me impedia de não viver o básico. Lembro que queria ser escritor para retratar o que era banal, carnal, o que a gente realmente vivia. Lembro que ela me abraçava as costas enquanto me roubava as palavras e dizia que eu era bruto porque não a escolhia prontamente. Eu realmente demorava a cogitar a possibilidade de largar os versos para satisfazê-la. Queria que ela pudesse entender que eu precisava daquilo para ser um homem mais interessante. A realidade tomava a ponta da minha caneta e eu poderia pagar seus sapatos caso a editora apostasse em minha melancolia fingida. O problema é que eu era um homem feliz. Ela dizia que apesar do bom humor eu via problema onde não existia, que respeitava demais a poesia e que eu a amava porque precisava depositar meu amor em outro corpo. Ela dizia que na verdade eu era um egoísta porque no fundo esse amor era todo para mim. Lembro da minha vontade de esganar e abraçar aquela infeliz em um aperto só. Mas aí pensava que estava ferindo a mim mesmo e resolvia comprar a droga do par de sapatos com dinheiro emprestado.

Ela me chamava de Quimera

Parte 2 - Sobre a nossa vida

Ela dizia que meu ciúme era bobo e que minhas manias eram feias. Eu tinha ciúmes dela porque não era difícil lhe roubar atenção. Eu sentia prazer em desdenhar seus olhares, mas sabia que ninguém mais deveria fazê-lo. Talvez eu quisesse que seus olhos de criança tivessem mais alma do que realmente tinham, eram tão sinceros que acabavam pesando as minhas intenções. Eu não queria entrar em seus jogos de utopia, só a imaginava andando de meias pela casa posando para mim à frente da cortina que escolheu a dedo na loja. Lembro da cortina ter flores e ela usava um termo “kitsch” como quem sabia que o fazia. Era sabida ou fingia. E eu pensava que só precisava aprender a tocar o maldito samba de que ela tanto falava. Eu não entendia quando ela dizia que naquelas noites que eu me ausentava minha voz não fazia falta. Ela não queria ouvir minhas piadas desprezíveis. Ela só queria que eu estivesse por perto fazendo barulho de xícaras pela casa, de descarga, de televisão ligada no canal de esportes. Ela só queria saber que eu estava acordado, como se isso fosse fazer grande diferença. Ainda tento lembrar do dia em que eu não dormi antes dela.